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"Ângela Diniz, a pantera que ainda arranha"

Juliana Berlim*

Polaroid reproduzida pelos jornais: Ângela ao centro, Gabriele Dyer à esquerda e Ângela Teixeira à direita. Em pé, ao fundo, Doca Street. Arquivo do processo. Imagem disponibilizada pela Radio Novelo. Ver link abaixo.


Ângela Diniz, a pantera que ainda arranha

Se você é mulher e está lendo esta crônica com certeza tem outra atividade em curso, porque mulheres são multitarefas naturais (a cultura do patriarcado não tem relação com este sistema de ideias, sabemos), portanto pare sua segunda ou terceira tarefa e vá ouvir o podcast “Praia dos Ossos” da rádio Novello. O programa revisa o “Caso Doca Street”, que, como bem observa a apresentadora Branca, entrou para a história da criminalística brasileira com o nome do assassino, não o da vítima: Ângela Diniz.


Mulher criada para casar e ser dona de casa, Ângela não coube dentro do modelo da tradicional família mineira para o qual fora adestrada. Livre demais em seus desejos, ousou amar e ser amada por quem e como bem lhe conviesse, o que incluía homens casados e práticas sexuais pouco ortodoxas. Sem profissão e vivendo de renda, filha da alta sociedade belo-horizontina, mudou-se para o Rio de Janeiro após um assassinato obscuro acontecido dentro de sua residência. Das etapas da vida de uma mulher adulta para as quais fora preparada, só se encaixava no papel de mãe, que o conservadorismo do ex-marido, que nunca aceitou a separação, a impediu de exercer, tirando-lhe a tutela dos três filhos.


Mesmo após quase cinquenta anos, alguns namorados se recusaram a dar depoimento para o podcast sobre seus envolvimentos casuais com Ângela, mesmo que, à época do acontecido, fossem homens jovens e desimpedidos. Gravaram o depoimento e, na última hora, desistiram de liberar a gravação. Fica a questão: quanto incômodo causa a conduta de uma mulher livre, mesmo que morta?


Pelo que o programa apresenta, eu não sei se seria amiga de Ângela Diniz, nossos temperamentos parecem incompatíveis. Mas defendo até o fim o direito dela levar a vida como queria, sem que fosse julgada como foi no julgamento de seu assassinato pelo namorado, o bon-vivant Doca Street. De vítima ela passa a algoz em um caso que mancha de vergonha a criminalística brasileira. Se ela era uma devoradora de homens era porque os homens correspondiam a suas investidas. Alcunhá-la de pantera, messalina, meretriz, qualquer adjetivação conservadora para aprisionar um espírito ventilado pela renovação de costumes setentista é um recado claro para outras mulheres: a escolha do exercício livre da sexualidade é desautorizada. Guardem-se em suas casas à espera do príncipe. Quando ele chegar, mulheres, estejam de avental, sabão e colher de pau na mão, porque vocês vão limpar, arrumar e cuidar dos seus escolhidos até o final de suas vidas conjugais. De graça.


A coincidência do sobrenome me traz à memória Leila Diniz, atriz de atitudes revolucionárias, cuja vida foi abreviada como a de Ângela (Leila morre em um desastre aéreo, no retorno ao Brasil de uma viagem internacional). Outra mulher que causava forte impressão por onde passava e arrastava uma legião de admiradores atrás de si. Alguns deles ela levava para sua cama, território livre ou que deveria ser para toda e qualquer mulher brasileira. Ângela Diniz pagou com a vida seu destemor por ter sido uma pantera desenjaulada demais e que, tanto tempo depois de seu desaparecimento, ainda arranha.


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Juliana Berlim

Escritora e professora


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