top of page

COMO ERA NO PRINCÍPIO...: texto de Renata K. da Rocha a Aliás

Renata K. da Rocha*

Fotografia de Lizi Menezes


Como era no princípio...

Entre quinta e oitava série, li os clássicos brasileiros na escola. Lembro do primeiro romance grande que me fizera chorar: Éramos seis. Depois dele, continuei. Gostei desse lance de ler e me emocionar e imaginar cenários. Amava Senhora, ria muito da Pata da Gazela, achava o Moço Loiro ridículo, Dom Casmurro me indignava, Iracema achava sem graça, Triste Fim de Policarpo Quaresma e O espelho abandonei. Para mim, Helena era triste, a Lucíola, babadeira. Uma hora dessas, como quem tromba o acaso, cheguei em Clarice Lispector. Que, a propósito, me estarreceu. Falei, indignada, para uma amiga que já estava no ensino médio: eu não entendo essa tal Clarice! Ela respondeu: Acho que ela só fará sentido quando houver maturidade.

Cirúrgica.

Desconfiei que poderia não ter entendido bulhufas de nada até então. Seguindo a lógica do pensamento, como Clarice era adulta demais para mim, busquei outras leituras: as famigeradas Biancas, Sabrinas e Julias.


Fui apresentada aos livros da Diana Palmer e os seus texas rangers. Homens de maxilar quadrado, sisudos, com cintos de fivela grande, olhos semicerrados e sombreados pela aba do chapéu, que levantavam a pistola sem pestanejar, mas que não sabiam falar de sentimentos quando mutilavam alguém. Achava as mulheres indefinidas, meio livres, meio não, sem interesses, mas que se apaixonavam por eles, embora não vissem a possibilidade de viver uma relação, que ora queriam a segurança dos braços masculinos, ora não, que esperavam e se entregavam e se derretiam e sumiam... sumiam ao lado deles.

Não entendia muito do universo feminino, mas já sabia o que poderia ser feito para ter um texas ranger para chamar de meu. A premissa era: por trás do chapéu e da arma que ostentam, homens são bobos, manipuláveis, rasos como um pires e, o melhor, eles imaginarão você como tal. Logo, se quiser que eles se estremeçam por você, brinque com a cabeça deles, não comente sobre a bobice alheia, dissimule, performatize, não omita opinião, baixe os olhos às vezes. É melhor tê-los como amigos, do que inimigos, porque, assim, eles não te lembrarão, sorrateiramente, da sua pequenez e miséria, como as mulheres às vezes costumam fazer de maneira mais explícita e dura. Você se casará e engravidará e terá filhos e será feliz e grata pela vida que esse varão, teu marido, construiu com a sua ajuda (ah, e costumam te fazer acreditar, nas entrelinhas, que é só essa a opção que existe no mundo: ser deles, com eles, por eles).


Comecei a trabalhar numa loja, por volta dos quatorze ou quinze, com outras cinco ou seis mulheres adultas, solteiras, casadas, enroladas, traídas, amantes, apaixonadas, desiludidas, cheias de histórias e experiências e saberes que compartilhavam comigo sem pudores ou censuras. Ouvia e me interessava e criava referências e via. Mas não me envolvia muito com aquilo tudo, não. Só queria ter um dinheirinho para comprar sundae com ovomaltine, algo recém-descoberto, quando ia ao curso de digitação, às quartas, quando era “liberada” pelo patrão.

Ganhava cerca de $150 mensais para arrumar os estoques. Apesar da boa vontade do dono em me ajudar a ser rica, ele me lembrava, indireta e mensalmente, que eu não tinha vocação para ser vendedora na loja dele. Ali, não seria promovida.

Pois bem, aproveitava as tardes da quarta pós-curso para passar na biblioteca municipal da cidade vizinha (já andava de ônibus sozinha) e pegar uns livros diferentes. Os Biancas não me entretinham mais, já tinha contato com narrativas muito mais interessantes durante o dia a dia, sem contar que esses livros tinham pouca intriga, pouco movimento, pouco núcleo: eram todos sempre iguais, credo.

Numa destas aventuras, a bibliotecária me mostrou os livros da Danielle Steel e do Sidney Sheldon, indicando que isso, sim, era coisa boa, coisa de primeira categoria, leia. Decidi ler todos os exemplares das prateleiras. Acreditei nela. Pegava-os. Todos, um por um. O prazo, até a próxima semana. Eram uns romances duma época esquisita, com dramas evitáveis, tragédias improváveis, amores não correspondidos banais, muito choro e perda e reviravolta, violência, traição e gente rica lascada e emocionada demais (daí, talvez, venha meu encanto por Succession).

Acabaram estes livros. Acabaram as minhas tardes livres. Já me considerava adulta e culta e entendedora dos seres humanos, pois já vira de tudo, desde a coisa mais pacata num rancho do Texas até a mais sinistra numa cobertura de Nova Iorque! Nada mais me surpreenderia.


Até que, de repente, fiz dezoito anos.

Comecei um estágio na prefeitura. As intrigas se tornaram ainda mais intensas e sérias e verdadeiras e adultas mesmo. Cochichos, traição, doença, paixão, rebeldia, sedução, gritaria, ofensas, xingamentos, dissimulação, manipulação, treta e confusão era o que eu via por todo o lado. Não havia obra fictícia que desse conta de todo esse período aos olhos de uma imaginativa moça do interior, que acreditava que eventos improváveis aconteciam apenas de mentira, na literatura. Ali as coisas eram reais, Bêlchi.

Os olhos esbugalhavam diante do mundo que se revelava dentro de um prédio.


Até então, minha mãe já fizera tudo por mim: pagara meu aparelho dental, pagara minha carteira de motorista, me dera roupa, comida e calçado etc. Então, já era a minha hora de buscar um teto todo meu (que, adianto, nunca chegou), minhas trezentas mil libras anuais (nem sinal também), discutir sobre botânica, arqueologia, antropologia, matemática, física, astronomia, átomo e literatura (quê?), com cara de inteligente e sábia! Era hora de descer dum avião, andar pelo aeroporto carregando malas, óculos escuros, exalando Chanel n. 5, com cabelos esvoaçantes e scarpin Louboutin. Era hora de ser empresária da bolsa de valores ou a Miranda do Diabo veste Prada, versão paranaense.

Queria chegar do trabalho no meu apê, escrever textos arrebatadores, ler literatura russa, numa poltrona confortável, com tapete agradável, bebendo um álcool caro e preferido, enquanto tomaria grandes decisões, sendo requisitada por pessoas importantes. Queria ir a palestras, queria falar dum jeito que eles fizessem silêncio, frequentar teatros e concertos e óperas com vestido longo. Queria garantir uma profissão, conhecer lugares no mundo, contemplar a urbanização e a genialidade de perto. Escolheria não me casar, nem ter filhos, passaria sem ser o espelho refletor do poder do homem, não o ajudaria a manter a dominação masculina, trabalharia o meu inimigo interno. Seria livre.

O problema era que ganhava $500 mensais, ralados, para fazer isto tudo, sozinha. Não seria nada disso. Eu só queria sumir um pouco daqui. Me agarrava a devaneios, porque, nesse momento, eu achava que, sendo assim, não seria atingida.


A Virginia Woolf falava de uma classe bem específica, quando pensava em mulheres e ficção, no século XX, né? Virginia falava de mulheres que eram inviabilizadas de se dignificar, por falta de renda e teto. Por exemplo, no século XIX, as mulheres não podiam sequer acumular dinheiro ou bens, além de criar com uma penca de treze filhos ainda. Elas dependiam da capacidade produtiva e dos bens masculinos para tudo! As que tinham, né? Como seria possível que elas falassem livremente, apoiassem o projeto de outras mulheres ou fomentassem bolsas de estudos para suas semelhantes, tivessem seus interesses e paixões, passassem, de objeto, a ser sujeito etc., fizessem uma literatura “tão boa quanto a deles”, se não tinham o básico que, para a Virginia, era espaço, privacidade e um dinheirinho para pagar por algumas viagens e experiências para além do morro que uivava?


Aos dezoito, dezenove, vinte, o que sabia sobre ser a mulher dos romances, sem as fantasias, nessa sociedade? O que sabia sobre a mulher que seria? O que sabia sobre o que ser eu, no mundo, significava?

Nada. Absolutamente, nada.


E agora, Maria?


[Continua, talvez...]



***

Renata K. da Rocha

Gosto de ver aquilo que normalmente passaria desapercebido. Pesquisadora de literatura, revisora e preparadora de textos ficcionais e não ficcionais. Mestre em Letras - Estudos Literários, pela Universidade Estadual de Maringá (PR), e doutoranda pela mesma instituição. Escrevi a dissertação: "A presença inquietante de sujeitos invisíveis em 'Quarenta Dias', de Maria Valéria Rezende", sob viés do Materialismo Lacaniano.


Lizi Menezes

Amante da literatura latino-americana, professora e mãe de Francisca e Aureliano, os gatos. Fingidora de uma escrita poética, aquariana tão aquariana que, muitas vezes, bate o pé e diz pra si mesma que, se quiser, pode ser qualquer outro signo, afinal, os movimentos são sempre constantes e mudar é o que nos rege.



9 visualizações0 comentário
bottom of page