Como explicar aquilo que não volta e que, ainda assim, permanece?
- Aliás Editora

- 24 de jul.
- 2 min de leitura
Atualizado: 28 de jul.

Os meninos estavam correndo pelo chão de areia molhada. À beira do mar, o céu alaranjado desenhava em torno da silhueta de cada um uma áurea bonita, úmida e tremeluzente. Vibravam dourados carregados da luz intensa de um longo dia. Talvez tenham ido à escola, eu não sei. Uns podem ter passado a manhã inteira descamando peixes para ajudar o pai. Outros, talvez, vadiassem pelas ruas do bairro assustando cachorros, gatos e passantes. Ou ainda perturbando o juízo carcomido de uma mãe que agora repousa, aliviada com a ausência do menino.
Só sei que ali estavam, reunidos, correndo atrás da bola enquanto a tarde escorria pelo horizonte. De onde eu estava podia ouvir os gritos e as gargalhadas. Eram Pedro, Fábio, Tiago e Hugo. Esbarravam uns nos outros, caíam, levantavam. Falavam as palavras que talvez engolissem em casa, fi duma égua, féla da puta, imoral e riam, riam com a boca cheia da liberdade pequena e momentânea debaixo do céu que escurecia pouco a pouco.
Senti uma pontada de inveja quando se sentaram na areia, quadris colados, sacudindo as camisetas enlameadas de areia e sal. Ficaram ali, silenciosos, os quatro, olhando o pedaço de sol que ainda resistia. A bola ao lado, imóvel, símbolo do elo entre eles.
Foi então que me dei conta: dada hora em minha vida, a bola se perdeu. E com ela, meus Pedros, meus Fábios, meus Tiagos e meus Hugos.
Quando criança, tive Ruth. Amiga de confidências, de risadas fáceis e promessas infinitas. Com ela, segredava as primeiras impressões do mundo, as durezas dos dias, e também as felicidades, íamos, eu e ela, costurando em cada encontro as memórias lá do lado de dentro. Mas há muito não ouço falar dela. Com os anos, além de Ruthes, perdi Bartiras, perdi Lucíolas, perdi Virgínias e tantas mais.
É estranho esse tipo de perda: umas têm gritos; outras, nem despedida. A vida se distrai, vira a esquina, cresce, desenrola ou comprime e quando olhamos pra trás, já não tem ninguém com quem dividir um pôr do sol.
Minhas perdas e saudades, meus ressentimentos todos pularam para fora naquele fim de tarde e molharam-me as bochechas. Anoiteci com a beleza do ouro da luz sobre os meninos que me trouxe a lembrança de quando eu também estive na areia, suja de mundo, mas inteira.
Saudade é bicho curioso, de tradução difícil. Como explicar aquilo que não volta e que, ainda assim, permanece?




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