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A PRIMEIRA CRÔNICA: um texto de Juliana Berlim para o blog da Aliás

Juliana Berlim*

Ilustração de Jéssica Gabrielle Lima


A primeira crônica

Prática dos cronistas é o comentário em voz alta, como se ninguém estivesse lendo, sobre o assunto das crônicas para as quais não se conseguiu achar tema considerado razoável. Neste exercício metalinguístico, as crônicas vão se desenhando sob os olhos da plateia leitora e a tarefa da semana cumprida. Percebi várias vezes, lendo crônicas, que o/a cronista, embora fosse um/uma funcionário/a de ponto semanal, não conseguia encontrar em sete dias um assunto digno de merecer um texto curto. Eu considerava aquilo uma atitude impossível, tanta vida acontecendo na cidade grande. Mas foi bem antes de eu arrumar um emprego. Porque depois que se começa a bater cartão a relação com o tempo muda e a cidade, mesmo enorme, fica pequena.


A última crônica a cultura cronística brasileira sabe como é: bonita como o sorriso do amor paternal. Se é assim, qual a beleza da primeira? Penso a respeito, enquanto organizo a agenda semanal do trabalho. Resposta simples só na aparência pensar a poética do começo. Poucos momentos da vida humana são tão marcantes como as primeiras experiências. Ainda que as experimentações posteriores sejam mais frutíferas, as primeiras definem as linhas gerais das demais. A graça do princípio é viver o mundo com os prazeres de uma criança risonha na frente de uma fatia de bolo de aniversário.


A primeira crônica de uma mulher, seja em que espaço for, é como o encontro com o infinito particular, pois há tanta indefinição na construção da carreira literária de uma autora, tanta estrada para pavimentar que extrapola as dimensões da caneta e papel na mão dentro do quarto próprio. O que quer uma mulher é resposta ouvida só das bocas das mulheres brancas, porque as negras ainda têm de perguntar aos quatro ventos: “E eu não sou uma mulher?” Uma cronista negra é dado de espanto, como bem observa Julio Ludemir, prefaciador do livro “Carolinas” (Bazar do Tempo, 2021), do qual faço parte: “... (a crônica), um dos gêneros mais cultuados no Brasil, que no entanto não deve revelar um negro desde Antonio Maria”. Apesar disso, eis que, brincando pelos labirintos da memória, tem-se a primeira crônica de uma escritora negra para um veículo do outro lado do país, a distância geográfica de outro continente. Foram só as placas tectônicas se tocarem e ela surgiu, leve para ser lida dentro do trem cheio, forte para derrubar tabus.



***

Juliana Berlim


Professora e escritora

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